Amolar

Acordei confusa. A sério. O mundo desenrola-se, mexe-se, torce-se por debaixo dos meus pés.

Visto a usual gabardine amarela, as botas de borracha e bato com a porta. O arco-íris desenha-se no céu, entre as gotas de chuva e os raios de sol. Aquele som mágico do amola-tesouras faz-se ouvir por toda a rua. A dúvida torna-se mais nítida. Questionei-o sobre a possibilidade de amolar aquela minha faca rija. Precisava de algo que cortasse manteiga.

“Menina, qualquer faca corta manteiga. Tem a certeza de que precisa?”

A pergunta fez-me estacar. A chuva continuava a cair às dúzias de gotas escorrendo pela gabardine cintada, mas impermeável. A minha cabeça pesava, pesava mais do que o corpo todo, mesmo depois de acabada de almoçar. Será que amolar era amolecer? Mole já eu era, ouvira-o ontem. Não tinha toda a certeza do mundo em relação a este ponto. Mas afinal, o homem amolava ou não?

“Menina…”

Amole homem! Pensei. Os meus dentes deviam estar cerrados porque a cara dele fechou-se.

“Desande, tenho mais que fazer do que atender maluquinhas. Gire!”

Virei-lhe as costas indignada. “Posso amola-la eu mesma”. Iniciei a maratona até à porta de casa. Mas ao longo dos cinco passos, o terceiro pareceu-me iluminado. Virei-me, e dei os três passos que me separavam do amola-tesouras e da sua música hipnotizante. A minha cabeça continuava a latejar.

“Desculpe, não sei o que se passou. Amole-me então a faca se faz favor”.

O homem olhou-a amedrontado. Aquela miúda com a gabardine amarela naquele dia enevoado, com uma faca em riste. Já estava habituado a caminhar a manhã toda sem um único cliente. Mas nunca lhe havia aparecido uma maluca a pedir que lhe amolecessem facas. Ainda para mais uma maluca que se tornava uma senhora logo a seguir, com um sorriso caloroso. Para que seria a faca? Era melhor nem pensar.

Iniciou o ritual, e quando acabou a lâmina da faca brilhava aos escassos raios de Sol. Entregou-lha. A rapariga deu-lhe umas moedas e voltou aos cinco passos que a separavam da porta de casa.

Abri a porta e entrei para o meu refúgio. A faca reluzia na minha mão, fazendo os meus olhos brilhar. Sentei-me à mesa com a faca à frente, e continuei a tentar descortinar a minha dúvida. A coragem teimava em não aparecer. Abri o pacote da manteiga. A faca parecia ter vontade própria.
Esquartejei a manteiga com a minha faca mole. Belo trabalho o do amola-tesouras.

A manteiga contorcia-se na mesa, e a mesa, essa parecia rodopiar tal como o chão e o resto da casa. Apenas se ouvia um ligeiro respirar. Envolta em todo aquele silêncio era a única presença audível. A expressão dela continuava suspensa em pensamentos.

Levantou-se arrastando a cadeira mais do que era preciso, e esquecendo-se de pousar a faca na mesa. O ar acima da mesa pareceu-lhe mais respirável. Dirigiu-se ao quarto.

“Talvez amolar, não fosse amolecer. Talvez… talvez fosse apenas um dia confuso”.Continuava a andar de faca em riste. Entrou no quarto, e a tal respiração tornou-se contável. A coragem começou a pulsar-lhe nas veias. Ouvia-se a música do amola-tesouras que lhe trouxe alguma luz.

Negra.

Só se deu conta do que fizera quando viu o dicionário aberto em cima da cabeceira. Debruçou-se salpicando a página de vermelho. Letra A .

Amolar - Afiar no rebolo; tornar cortante; aguçar.

Olhou para a cama e viu-o inanimado. Afinal, a última frase, o “ e matou mesmo” virara-se contra ele. Amolar. Que confusão imperdoável. Que dia confuso. Que paz de alma que sentia agora.

Deitou-se a seu lado, agarrou-lhe na mão fria, e deixou-se adormecer ao som da música do amola-tesouras.

Afinal a Ana antecipara-se.


xD